Mulher de tabuleiro, bom apelido. Vinha-lhe à cabeça uma brasileira baiana, esbelta, rendas brancas, baixando as cocadas para o menino de olhos brilhantes e gulosos. Deu risada sozinha e pulou da cama de colchão grosso de crina, os travesseiros de macela, enormes, fofos.
Era um quarto simples, ascético, havia conseguido guardar alguma coisa do Norte, aquela singeleza de ter pouco e não sentir falta de muito. Nada de exageros, só o que bastasse.
Àquelas alturas o marido já se mandara para o campo fantasiado de fazendeiro. Havia tempos que só usava bermudas e tênis na roça, e ternos em São Paulo. Mas hoje era dia de demonstração de drones, e já estava lá recebendo os vendedores técnicos daquelas geringonças. Até que havia sido convidada para a sessão de novidades. Nem aceitou, lembrou dos irmãos fazendo aviãozinho e soltando antes de se estalarem no chão no meio de choros e ranger de dentes.
E além disso todos haviam sido convidados para o almoço, quiçá lanche e jantar. Tinha de providenciar a comida mesmo, pois era muita gente para ajudar, mas que não se cansava de comentar a novela das nove e os namoricos, se ela não chegasse a tempo de se fingir de brava.
Já encomendara uma dúzia de frangos e pedira que os achatassem como borboletas. Ficavam com uma superfície maior para dourarem por igual e mais depressa. Temperava e deixava na temperatura ambiente antes de assar. Dourava primeiro em frigideira de ferro e depois enfiava no forno na grade de cima lá no fundo, para que as coxas assassem junto com o peito. Tudo num calorão dos infernos, em meia hora estavam todos prontos.
Na hora de servir espalhava manteiga por cima e grãos de pimenta-do-reino verdes colhidos na hora. As visitas achavam tudo muito orgânico, e era mesmo, mas sem novidade, pois desde os seus avós não se compravam latas. Cada um tinha sua horta, não muito cuidada, meio ao deus-dará. Ela especialmente achava bonita aquela bagunça, cheia de bichinhos que se comiam uns aos outros.
Sentia sempre que as visitas a olhavam com simpatia, mas também com um pouco de pena. Dia e noite na fazenda com umas incursões por São Paulo. Ela que parecia uma mulher inteligente, sempre a lidar com safras, a fazer render aquela quantidade de frutas, aipins e inhames. E os remédios que administrava àquelas crianças remelentas que a olhavam como se fosse uma deusa da floresta.
Ora, o que fazer? Era a rainha do tabuleiro, administrava as fomes profundas de bolo de fubá, de pão de queijo, de paçoca. E nem se importava. Tinha posto num quadro seu diploma de faculdade, onde estudara Kant, que alívio, Kant na parede!
Às vezes, deitada na rede do terraço, deixava cair o livro de receitas no colo, olhava as estrelas, deslumbrada, mínima no meio daquela natureza enorme e pesada. Sentia os barulhos à volta, entendia quase todos, a respiração dos animais grandes, um relinchar de cavalo, um bater de asas de coruja assustada.
Preferia tudo aquilo. Ah, aquelas viagens de helicóptero, céu azul, mar azul, nada de perigo, mas para ela era cadeira elétrica, tinha medo de todo aquele azul, medo de ir fazer companhia aos olhos azuis do doutor Ulisses.
Quanto pensamento bobo, melhor seria ir arrumar a mesa com aquela louça bem rústica e flores do campo, as visitas adoravam. Quando não tinham visita comiam na enorme mesa da cozinha, já há três gerações na família do marido. Nada mais que uma sopa ou uma salada variada.
Os drones começavam a voar mais perto, que não caíssem sobre as telhas acabadas de consertar, murmurou ela.
Nina Horta é cozinheira, escritora e propietária do bufê Ginger. É autora dos livros Não É Sopa (uma mistura de crônicas e receitas) e Vamos Comer. Este artigo foi publicado originalmente em fevereiro de 2019, na edição nº 400 da Revista Globo Rural.
Source: Rural
Source: Import Rural