Eu me encantei com um artigo do economista Eduardo Giannetti dedicado ao elogio do vira-lata, aliás, expressão do Nelson Rodrigues que ele retoma. Em todos os setores nos sentimos vira-latas, mas não assumimos a nossa síndrome. Nesse setor de alimentação, o nosso, quem oferece arroz com feijão a uma visita importante?
Temos vergonha. Tudo bem que queiramos comer o mundo, mas não custava nada um pouco de orgulho pela nossa identidade brasileira, miscigenada, quem sabe não viria a calhar?
Um povo que em se plantando tudo dá, paisagem de verdes mares, areia branca e o prato de tutu, ovo frito, torresmo, milho, couve batidinha, mandioca frita, manga sumarenta, a jabuticaba nos espreitando com seus mil olhinhos pretos? Doce, doce…
Não estou me queixando, só acho interessante que, por mais que nossos chefs se curvem sobre a terra num esforço de desencavar os biscoitos de fubá, as broinhas, os doces em calda, umas frituras aqui, uns assados ali, acabamos mesmo nos encantando com as distâncias, desfocados.
Nem peguei o tempo em que éramos franceses de carteirinha. As grandes mesas só queriam saber de comer à provençal, festejávamos com gateaux, e não com bolos, refletíamos com Brillat-Savarin. Um livro de Alexandre Dumas nos ensina a fazer camarão. “Preparado logo depois de pescado, o camarão deve ser simplesmente jogado vivo em uma panela cheia de água do mar em ebulição à qual se acrescenta um fio de vinagre. Transportado para Paris, é mergulhado vivo em um caldeirão de água doce com um quilo de sal para quatro de camarão fervido durante cinco minutos e retirado. É então passado na água fria (e não salgada), o que lhe imprime para o olhar o mesmo sabor…” Ai, ai, ai!
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Num cardápio para nobres, bem antigo, encontramos um jacu! Esse, sim, exótico para nós.
E mais sabayons e croquembouches… E escargots, e fines herbes, o foie gras. Foi mudando, lá isso foi. Lá pelos anos cinquenta chegaram os americanos com suas latas. O que se escondia lá? A beleza e a praticidade dos pêssegos em lata, perfeitos, pareciam de plástico, os cogumelos, o atum, as pequenas ervilhas, e a língua inglesa começou a se infiltrar nos cadernos de receita. Adeus, franceses, e vibramos com os hot dogs, os muffins, as doughnuts, os cookies. Quem tem uma loja chique de bolachas? Ninguém. E as crianças lambem coberturas de cupcakes como se fossem pirulitos de feira.
Qual será nosso problema com o bolo de fubá escaldado, o biscoito de araruta, as brevidades, o doce de coco com ovos? O pernil de porco assado com farofa, a moqueca, o pastel de palmito, o pequi, o bolinho de sobra de arroz? O biscoito de polvilho? O doce de figo cristalizado?
Confesso que não sei, deve ser a história do cachorro vira-lata que refuga o nacional. Confesso que tudo isso me veio à cabeça por estar traduzindo um livro americano muito elogiado e premiado. A certa altura dei com a palavra “s’mores”…Me achei velhíssima, uma palavra nova, um doce novo do qual nunca ouvira falar!
Wikipédia, Google, socorro! Decepção! A palavra apareceu em 1920, num livro de escoteiros e bandeirantes, e é um sanduíche de dois crackers que abrigam marshmallow e chocolate, a serem comidos à noite, junto da fogueira. Atenção, são os “s’mores”, contração das palavras “some” e “more”. Adeus ao quindim, às melindrosas, aos biscoitos de polvilho. Vamos comer as frutas vermelhas, as blueberries, boysenberries, cranberries, enquanto aqui tropeçamos nas amoras espalhadas pelo chão, pulamos a visão das jabuticabeiras floridas, corremos para os s’mores, quem não se mata por um s’more quentinho, sentado no chão sob as estrelas desse céu brasileiro?
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