Era engraçado, não tínhamos chácara nem sítio nem fazenda e colecionávamos a revista Globo Rural. Com certeza era o nosso pequeno e nostálgico pedaço de terra, aquele gravado por alguma casa de avó, alguma roça de infância.
Finalmente compramos um sítio e a coleção mudou junto conosco, e se encontrou com outra igualzinha do meu genro que também não tinha sítio. Moral da história, a revista era o nosso único contato com a terra. Era uma delícia de olhar, sempre com alguma fruta ou vegetal, enorme, obeso, o plantador tentando carregar, rindo com todos os dentes, sempre uma criança por perto.
As comidas eram de roça. Mesmo. Podiam e eram gostosas, mas a apresentação não poderia ser mais sem graça. Os conselhos serviam para qualquer jardinzinho, para limoeiros, pés de laranja e jabuticabas, além de sítios e fazendas, é claro. Acho que o segredo eram as páginas finais onde ficavam umas propagandas com endereços para aumentar a vontade de morar no mato. Fogões a lenha, secadoras, defumadores, estufas, galinhas de todos os jeitos, galinheiros, e patos e pavões e cavalos, e até um veado, não sei bem se era um veado ou alce, esqueci, tinha chifres. Muito legal aquele depósito de sonhos.
E a vida foi correndo.
A porcentagem de pequenos fazendeiros no Brasil começou a diminuir dia a dia. As fazendas aumentaram em tamanho de terras, quantidade de animais. Pior é que as fazendas modernas começaram a se industrializar, produzindo uma ou duas coisas e aquele pequeno chacareiro que plantava para si e dividia o que sobrava com os vizinhos foi ficando para trás. E os pequenos só plantavam para seu consumo, e acho que até um dia deixaram de plantar e começaram a comprar o feijão e a farinha na venda.
Atualmente até que estão na moda, mas é uma luta insana. Orgânicos, orgânicos, é tudo que se fala, mas não dá nem para encher o buraco do dente comparados com as fazendas industrializadas. E dizem os filósofos que até a nossa cabeça foi mudando. Não tem mais aquela história de cheiro de capim molhado e estrume e fogo da lenha. A ideia é o desenvolvimento, à medida que as grandes fazendas plantam para todos e podem baixar os preços.
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Não sei se os seus defensores da agricultura sustentável, alternativa, são exagerados ou se realmente serão formadores de comunidades mais felizes e bem alimentadas, que comungam com a natureza, que fazem sua própria comida, plantam suas hortas na cozinha ou no quintal.
Mas… Desconfio que comparados com as novas fazendas que vejo são um pingo d’água no oceano. Máquinas, enormes extensões plantadas, drones, computadores, aviões, ceifadoras que ceifam sozinhas, colheita por máquinas.
São lindas também essas fazendas novas. Querem alimentar a todos, querem atravessar oceanos… E atravessam. Não tenho certeza se nossa cabeça mudou ao plantarmos nossas pequenas hortas nostálgicas, aquela vontade de ter um pavão abrindo as asas em frente da casa, alguns momentos de extrema beleza. No fundo sabemos que ainda está longe o dia do mundo ser alimentado organicamente, essa utopia de tantos. O que não nos impede nem um pouco de continuar lendo nossas revistas velhas, comendo muita salsa e cebolinha do quintal.
Os orgânicos ainda não dão conta de nossa prodigiosa fome. Mas temos uma fé básica. Quem vai cuidar de nós serão esses bravos e ricos agricultores que, ao perceberem nossa fome de natureza pura, de terreiro, vão descobrindo a mistura de produtividade com organicidade. Um dia desses ainda conseguem.
Nina Horta é cozinheira, escritora e propietária do bufê Ginger. É autora dos livros Não É Sopa (uma mistura de crônicas e receitas) e Vamos Comer. Este artigo foi publicado originalmente em abril de 2018, na edição nº 390 da Revista Globo Rural.
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