Ainda hoje, acreditem, completados 98 anos de idade e cerca de 70 de trabalho como engenheira agrônoma, Ana Primavesi não tem consciência do quanto significou e significa para o desenvolvimento da agricultura, ou melhor, da agroecologia, no mundo.
Por mais de uma vez, ao sentar para almoçar ou depois de participar de algum encontro ou evento no qual era a convidada de honra, ela comentou: “eu não entendo porque as pessoas gostam tanto de mim.” Ou: “As pessoas me adoram tanto e eu não sei por quê.” “Não sabe, doutora?”, pergunto verdadeiramente surpresa. Ela faz que não com a cabeça, e pronto, o assunto já passou.
Pode até parecer presunção àqueles que nunca conviveram com ela lerem essa história, mas Primavesi não entende mesmo. “Como podemos ser premiados por fazermos o que é o certo?” ela disse noutra vez, com toda razão. É que para ela era natural trabalhar com o solo vivo, tentando reproduzir ao máximo o que a natureza já faz. Era óbvio.
Andando a seu lado na ocasião de um Congresso de Agroecologia em Botucatu, em 2013, o encontro fortuito com o Mito (sim, esse é o verdadeiro Mito) transformava adultos em crianças; os rostos se voltavam num espanto; incrédulos apertavam os olhos para terem certeza de que era ela mesmo.
Em uma marcha lenta com sua bengala mas com andar firme, Primavesi tenta chegar ao palco do evento que a homenageava, deixando para trás centenas de fotos tiradas freneticamente. Recebe a placa das mãos de Maristela Simões do Carmo, sua amiga e professora de longa data e agradece humildemente. Os cinco minutos de aplausos ininterruptos a constrangem, mas não há o que fazer. Na plateia, olhos brilhantes de lágrimas expressam a emoção de estar diante de Ana Maria Primavesi, a primeira mulher a afirmar, num meio exclusivamente masculino, que o solo tem vida. A pessoa que ensinou com linguagem simples o que todos podem e conseguem entender. Aquela que nos aproximou de nós mesmos pela origem de tudo, a terra, e integrou saberes, tornando-nos autônomos em nossas práticas.
Ana Primavesi trabalhou com o solo, sua paixão, a vida toda. Quando ainda estava na Universidade Boku, em Viena, na Áustria, a Segunda Guerra tinha ceifado a vida de seus dois irmãos mais velhos. Seu pai, Sigmund Conrad, fora recrutado também, como foram todos os homens. Logo tomou um tiro de dum-dum no tornozelo e quase perdeu o pé, que ficou pendurado pelo que restou de pele. Isso lhe custou três anos num hospital de guerra (chamado lazareto), e coube à mais velha das filhas assumir as responsabilidades em casa.
Ana Maria Primavesi tem a capacidade de juntar tudo, de fazer com que o difícil se torne familiar, com que as relações se apresentem de forma simples e que a natureza seja encarada com ternura.
Estudar naquele contexto era até uma teimosia. Ela conta que Hitler fez de tudo para que os estudantes desistissem da Universidade. Não conheciam aquela moça cujo sobrenome quase chamou-se “determinação” e que tinha conseguido salvar o pai de uma execução sem a ajuda de nenhum advogado, de ninguém. Enfim ela se formou, fez o doutorado e acumulou em sua bagagem a experiência pesada da Guerra. No convívio com professores magistrais se constituiu e, sobretudo, desenvolveu a compreensão (única) de como funciona a vida do solo.
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Quando a guerra acabou, Ana tinha 25 anos. Casou-se com o também engenheiro agrônomo Artur Primavesi e, diante de uma Europa destruída e traumatizada, o casal decidiu vir para o Brasil. Foi aqui que Ana passou a viver na e da agricultura. No começo, mais nos bastidores, porque os filhos exigiam sua atenção. À medida que cresciam (ela teve três), voltava à ativa, mas nunca deixou de auxiliar Artur tecnicamente.
Aqui, enfrentaria outra guerra. Quanto mais defendia a vida do solo, ou mais didáticos eram suas palestras e livros, mais era acusada de não ser científica. Os ataques constantes não a demoveram. “Tenho certeza do que estou falando”. Não era uma certeza para sobressair sobre um ou outro, numa luta de egos. Eram as leis da natureza que ela defendia, a agricultura deveria trabalhar ao máximo para mantê-las, pois a prática agrícola já é algo agressivo, antinatural.
Ana ousava. Falava de colêmbolos, bactérias e nematoides, de “compounds” entre os elementos químicos e deficiências minerais, e emendava nesse contexto as historinhas mais queridas das formigas que “dançam” encontradas em Sorocaba, do boi que comia as correspondências do governo em Fernando de Noronha ou da “dona cobra”, uma cascavel que vinha cumprimentar os visitantes de sua fazenda em Itaí balançando seu chocalho. Esse talvez seja um dos maiores atrativos nela: a capacidade de juntar tudo, de fazer com que o difícil se torne familiar, com que as relações se apresentem de forma simples, e que a natureza seja encarada com ternura. Ainda finalizava suas apresentações com fotos Kirlian, imagens que revelavam a energia das plantas e os efeitos maléficos das pulverizações de agrotóxicos e das deficiências minerais provocadas pela adubação química.
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Para os catedráticos aquilo era uma afronta à ciência, tão difícil e limitada a “poucas inteligências.” Mas para os agricultores de fato, aqueles que lidavam com a essência da natureza, era o alimento fundamental para suas práticas. Ana encantava, desbravava. Contava, por exemplo, que o jatobá é uma árvore cuja seiva é tão rica em minerais que dava-a aos filhos como suplementação mineral, não sem antes pedir à árvore permissão para sua retirada. Eles nunca precisaram tomar vitaminas.
Hoje celebramos seu quase centenário. Nosso jatobá sagrado da agricultura, imponente, completa 98 anos, mais de setenta dedicados à ciência do campo. Quanta vida! Quanto aprendizado.
Ana Primavesi, querida árvore mestra. A matriz de todos nós.
* Virgínia Mendonça Knabben é geografa e professora. Em 2016, publicou a biografia Ana Maria Primavesi, histórias de vida e agroecologia, que deu início à reedição da obra de Ana Maria Primavesi, pela editora Expressão Popular.
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