O cheiro de goiaba se espalha já na estrada, a alguns quilômetros antes da chegada à fábrica da maior processadora da fruta no mundo. Ela é brasileira, está localizada no município de Matão, a 300 quilômetros da cidade de São Paulo. Ao entrar na indústria, o visitante depara com milhares de tambores vermelhos ao fundo do terreno. Todos cheios de polpa fresca. O produto é usado na fabricação de diversos doces, entre eles a famosa goiabada.
Empilhados a céu aberto e também abrigados em enormes galpões, os tambores assustam pela altura e extensão que ocupam. No dia da visita da reportagem da Globo Rural, havia 300 mil unidades com capacidade para 200 litros, ou seja, 60 milhões de quilos de polpa de goiaba estocados no pátio. O produto pode ficar armazenado por até três anos em temperatura ambiente e é despachado aos poucos da unidade em caminhões com destino aos portos de Santos (SP) ou Paranaguá (PR). De lá, ganham o mundo.
Estamos na Predilecta, um negócio familiar jovem, com menos de 30 anos, 3.800 funcionários, quatro parques industriais pelo país e um faturamento de gente grande: R$ 1,6 bilhão ao ano. Campeã mundial em processamento da fruta vermelha – além desse tipo, há a goiaba branca –, a empresa sozinha absorve um quarto da produção nacional, ou 75.000 das 300.000 toneladas produzidas pelo país. O Brasil lidera o ranking mundial de produção da goiaba vermelha e, quando somada a produção dos dois tipos, é o quarto maior do mundo, atrás de Índia, Paquistão e México.
O abastecimento da indústria é garantido por produtores associados e com índices de produtividade quatro vezes mais altos que a média nacional. O modelo de negócio também dá previsibilidade de renda aos produtores, atraindo cada vez mais gente e transformando o perfil da região, que era dominada por pomares de laranja.
Mesmo em tempos de crise e recessão econômica, a projeção de crescimento para 2018 é de dois dígitos. A expectativa é de 18% a 20% para o grupo. Só no segmento da goiaba, a previsão é de 25%. “O que impulsiona esse aumento são as vendas externas de polpa, para produção de suco e vitaminados”, explica Bruno Trevizaneli. Agrônomo de 30 anos, o jovem é um dos maiores especialistas em goiaba no local. Ao ser questionado sobre o cargo que ocupa, diz apenas que é o agrônomo. Na verdade, Bruno é filho de um dos quatro sócios do negócio e um dos porta-vozes da empresa. Ninguém se preocupa com cargos.
Numa sala de reuniões do prédio de escritórios da fábrica, ao lado do irmão caçula e do diretor industrial (a quem chama carinhosamente de tio, apesar de não terem nenhum grau de parentesco), Bruno explica os motivos que fizeram a empresa crescer tanto até mesmo em tempos difíceis para a economia nacional. “O setor de alimentos é sempre o último atingido pela crise. As pessoas não ficam sem comer. Nem goiabada.”
O produto é o carro-chefe da companhia e responsável por construir o império Predilecta. Além dela, o mercado interno é puxado pela geleia de goiaba, matéria-prima para a indústria de sucos. A Coca-Cola está na lista dos maiores compradores. Mas o comércio exterior, conta Bruno, é o que cresce mais – e rapidamente . A empresa exporta atualmente para quase 60 países. A lista de clientes estrangeiros aumentou em 20 países só nos últimos dois anos.
O pontapé para a conquista do mercado internacional veio no ano 2000, com o desenvolvimento de uma tecnologia que mantém a polpa fresca e com todos os seus nutrientes preservados por até 36 meses em temperatura ambiente, resultado de um trabalho de pesquisa na Unesp de Jaboticabal (SP).
“O mundo até aquele momento só tinha essa matéria-prima congelada. Conseguimos fazer isso em vaso asséptico, com um bag aluminizado, como ocorre com o leite UHT. Não entra oxigênio nem luz ultravioleta. Isso abriu o mercado tanto lá fora como aqui”, comenta o diretor industrial Leonardo Bolzam, o Léo, que trabalha no grupo há 22 anos.
Os bags assépticos que forram os tambores estocados na fábrica fizeram a Predilecta sair da chamada cadeia de congelados, uma rede que envolve desde caminhões até navios frigorificados, reduzindo assim o custo logístico das operações. Só de frete (rodoviário e marítimo), a economia foi de um terço nas cargas. Hoje, a tecnologia é amplamente usada para a exportação de produtos de diversos segmentos no país.
De crise a Predilecta conhece bem. A empresa foi fundada durante uma das piores da história do Brasil, em 1991, na era da inflação superando os 300% ao ano e de grandes indústrias fechando as portas. Prevendo um caos maior, o engenheiro químico Antonio Carlos Tadiotti decidiu fazer um acordo com a empresa processadora de goiaba e tomates na qual trabalhava, assinou uma rescisão de contrato trabalhista de 14 anos e com o dinheiro decidiu abrir sua própria fábrica. Chamou outros dois colegas do antigo emprego – um da área mecânica e outro do departamento comercial – para formar um time completo e abrir o negócio em sociedade.
Temendo a falência da empregadora e a perda do trabalho, o trio abandonou o barco antes de afundar. Levaram todo o conhecimento e experiência acumulados para aplicar no negócio próprio. O problema era capital. O dinheiro levantado pelos três foi suficiente para comprar alguns equipamentos para uma tímida linha de processamento – e ainda faltava o barracão.
“Tínhamos somente o dinheiro da primeira parcela, uns 7 milhões de cruzeiros na época. Então, decidimos convidar o dono da construtora para ser o quarto sócio. Eu já o conhecia, porque somos da mesma cidade, São Carlos”, explica o químico, hoje com 71 anos, o rei da goiaba no Brasil.
O empresário da construção civil, pai de Bruno, aceitou a proposta, terminou a obra e se tornou o quarto sócio da empresa, com 25% das ações. Ele e os outros dois sócios não gostam de aparecer, querem distância dos holofotes, flashes, câmeras e entrevistas. Aliás, toda a família Predilecta é muito discreta, simples, embora todos os conheçam na região.
Nos primeiros meses de operação da pequena indústria, Antonio Carlos Tadiotti contou com o bom relacionamento que tinha com fornecedores do antigo emprego e até com a ajuda dos concorrentes para garantir o funcionamento do negócio. “Uns emprestaram as caixas plásticas para usar na safra da goiaba, outros emprestaram dinheiro para pagarmos como pudéssemos. Os produtores nos forneceram a fruta para receber no outro ano e pelo preço do momento. Começamos devendo,” resume Antonio Carlos.
A relação de confiança era tanta que, quando foram liquidar as dívidas, os fornecedores de goiaba disseram preferir deixar o dinheiro com a indústria a manter no banco. A justificativa era clara. Na época, todos os brasileiros estavam traumatizados pelo confisco dos depósitos bancários, medida adotada pelo governo de Fernando Collor. “Mas considero que nós fomos privilegiados com o plano”, brinca Antonio Carlos.
Com apenas uma safra de goiaba por ano e o negócio engatinhando, Antonio Carlos viu a necessidade de incorporar outro produto à linha de produção, para não deixar a fábrica parada por muito tempo. Aí veio o tomate. Hoje, a empresa que surgiu da goiaba também é a maior processadora e produtora de atomatados do Brasil.
Simples e sempre com um bom humor característico, o engenheiro químico é o autor da receita da famosa goiabada e de todos os outros produtos fabricados pela marca, como os extratos de tomate temperados, prontos para consumo.
Ele bate cartão diariamente na unidade de Matão e chama todos os funcionários pelo nome. Em cada ponto da fábrica, para, beija, abraça e troca uma conversa rápida com algum colaborador. Léo, o diretor industrial, é quem verifica se as receitas estão saindo ao gosto do criador. “A goiaba é muito rica, nutricionalmente falando. Tem cinco vezes mais vitamina C que a laranja e duas vezes e meia mais licopeno que o tomate”, emenda.
A lista de itens fabricados pela Predilecta passa de 130. A empresa é responsável ainda pela fabricação de produtos para 70 marcas próprias de grandes redes de supermercado, como Carrefour e Walmart, no Brasil e mundo afora. Antônio Carlos diz nunca ter sonhado ser um grande empresário e até hoje busca algum desafio novo ao acompanhar cada etapa do processamento das frutas.
Num dos passeios pela linha de produção, o engenheiro ficou encucado com um resíduo do processamento da goiaba e mandou para um laboratório analisar no Japão. Pronto. Nasceu um negócio. Misturado a um composto, o material está sendo vendido atualmente para a indústria de cosméticos como esfoliante facial. O mesmo acontece com o vapor do processamento da goiaba, que é condensado, armazenado e usado em produtos com essência de goiaba.
O início, apesar de conturbado, foi o que acabou formatando o modelo de negócio que funciona até hoje na Predilecta. “Para a maioria das pessoas, o passado não interessa. Mas, para nós, foi de grande importância. Criamos o modelo a partir da necessidade”, diz seu Antonio, como é conhecido. Todos os produtores que ajudaram os sócios no início fazem parte da lista de fornecedores da empresa, mas hoje recebem o pagamento pela fruta 30 dias depois da entrega, e não mais no ano seguinte.
Cem por cento da matéria-prima usada é plantada por terceiros. Uma indústria com fortes traços de cooperativismo. Os produtores associados à empresa ficam num raio de até 60 quilômetros da fábrica de Matão, para evitar queos longos trajetos até o processamento provoquem danos ao fruto. Para garantir um padrão de qualidade à produção, a Predilecta fornece todos os insumos de campo – mudas, adubo, defensivos – e ainda dá suporte técnico. De quebra, garante a compra da colheita a um preço preestabelecido. “Este ano, por exemplo, teremos uma supersafra. Meus concorrentes vão jogar o preço da fruta lá embaixo, o nosso será mantido. Se me perguntar quanto vai estar o preço da goiaba em outubro, te digo que será R$ 0,32 por quilo, acima da média”, diz Bruno.
Com uma área irrigada de cerca de 1.000 hectares, a produtividade média dos associados da Predilecta é quatro vezes maior que a nacional: 71.000 quilos por hectare, contra 17.000 quilos por hectare. O segredo está na dosagem de água nas plantas, mas também na poda das árvores e na época de plantio. “É a planta que mais responde à poda. Se for cortada no período de verão, entre a poda e a colheita, temos frutos em cinco ou seis meses. Se for podada no frio, leva-se de seis meses e meio a sete meses. Essa técnica fez com que conseguíssemos três safras em dois anos. Sem irrigação, seria uma safra por ano”, explica Bruno, que decidiu pesquisar a técnica.
A variedade de goiaba plantada pelos produtores é uma só. Chama-se paluma. “Ela foi desenvolvida pelo pesquisador Fernando Mendes Pereira, em Jaboticabal. É um produto com casca fina, muita polpa e pouca semente. Para nós (que processamos), a melhor goiaba é essa. Tem teor de sólidos solúveis um pouco maior e um balanço entre açúcar e acidez”, explica Bruno.
Ainda há espaço para aumentar a produção, garante o agrônomo. Como boa parte dos produtores da goiaba veio da laranja, o espaçamento entre ruas e entre as plantas está sendo ajustado. Bruno está mudando essa configuração, reduzindo o espaçamento e aumentando a população de árvores por metro quadrado. “Antigamente, os pomares tinham 7 metros entre plantas e 8 metros entre ruas, ou 56 metros quadrados por planta. Hoje, conseguimos colocar quatro vezes e meia a mais de planta por área”, diz.
A Predilecta coleciona títulos mundiais e nacionais. No segmento de tomate, produz 30 milhões de unidades de sachês de molho pronto por mês. E de sachês de monodose de ketchup, aqueles que normalmente acompanham os lanches, são mais 90 milhões de unidades por mês.
Boa parte dos resultados da companhia é atribuída ao futebol. No início da fabricação própria, seu Antonio estimulava a demanda pela goiabada de boca em boca. Levava uma quantidade dentro do carro e, por onde passava, oferecia o produto. Até que um dia um amigo de Matão que fabrica calções esportivos lhe apresentou um representante do Corinthians responsável pelo licenciamento da marca. “Logo me deu um estalo e uma ideia. O cara me propôs desenvolver um copo para vender com a marca do clube e se comprometeu a fazer um teste de três meses me fornecendo os decalques”, diz.
A aposta fez decolar as vendas. “Foi uma barbaridade. Formamos 13 clubes. Não vencíamos a produção e, quando vi, estávamos vendendo para o Brasil inteiro”, comemora Antonio Carlos.
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